domingo, 26 de abril de 2020

Pode falar, eu escuto!






Pode falar, eu escuto!

Uma trajetória, puxe a cadeira, se recoste que sou todo ouvido. Aos olhos, as lágrimas, ao suspiro, o ar quente, ora suave, ora ofegante. A calmaria da superfície ao movimento ritmado do submerso eu.
Pode falar que sou todo ouvido, olho, observo, vejo e não entendo, não compreendo. Novamente mergulho nas lágrimas que molham e não rolam, vejo e não entendo.
O movimento nas artérias que levam o sangue da vida pelas vias centrais e laterais dos caminhos obstruídos por pensamentos inconclusivos. Sou eu, doutor? Onde os passados e o presente se encontram e trazem as formatações inconclusivas do agora? Sou eu, doutor?
A criança de abdome distendido à margem do canal caminha, as mãos daquela que trouxe ao mundo, segura, e o cachorro morto nas águas sujas repousa. Não há profundeza, há um filete de água mal cheirosa.
Tomate, senhor? Tomate, senhora? A carne chegou agora, vai querer? A porta da casa ao lado dos tabuleiros dos feirantes. Pode falar, estou escutando… Fique à vontade.
A inquietação da mãe menina, o ferro de engomar a carvão, pesado, café o cheiro. À frente de casa, o chão vermelho, a cerca de madeira, bate a foto, papai.
Sobe agora o elevador, ascensorista, o último andar, lá a casa do administrador. O olhar sobre a cidade, segue o rio, águas escuras, mas segue o rio. Pode falar, estou ouvindo.
À margem do rio, os peixes a vender em pequenos sacos plásticos, estes eu não poderia tê-los, dá azar, menino. Puxe a cadeira, pode sentar. Estou ouvindo.
 A ponte, atravesso, na esquina o colégio, Maurício de Nassau, da cidade maurícia. O olhar, as lágrimas que não rolam, os olhos que se  umedecem. Pode falar, estou ouvindo.
O primeiro contato, as primeiras lições. Descobri, nós não morremos, a vida é eterna. Os olhos se abrem, a respiração ganha outro ritmo. Agora eu sou.
Durante as descobertas, um freio. “Você é responsável pelos corações que conquista”. Como interpretar? O que é isto, interpretar? Posso, não posso? Sou responsável?
Pensei que podia, mas as águas dantes tranquilas na superfície parecem inquietar. “Aqui você é livre, nada é proibido” Engodo. Pode falar, estou ouvindo.
1964 esta é a data, nos braços do avô, o grito ao redor, corre meu avô, sobe as escadas do edifício Joaquim Nabuco. Feche a porta, a revolução estourou. Os tanques na rua. O olhar assustado, a respiração agora ofegante. O passado não tão passado, ajudando a construir o presente não tão presente. Que futuro?
Pode falar, estou ouvindo. Ah, sei que o amanhã seguirá e navegará nas artérias do meu Recife.
Vô, quem são estas mulheres? São as polacas, meu neto. O que elas fazem aqui na rua, sorrindo e conversando com estes homens mal arrumados? Trabalham, meu neto.
Descobri que não morro, ninguém morre, desencarna. Descobri que aqui nada é proibido, mas, tudo é proibido.
Um grito, o silêncio, a injustiça, a fome, o poder, a caridade, evoluir, crescer, aprender, a fome, um grito, o silêncio, a injustiça, a fome, o poder. Quem pode? Quem tem direito? Você é pobre, você é negro, você não é você.
O Terreiro, o centro, a igreja, as encruzas. Que loucura. Pode falar, estou ouvindo.
As lágrimas não rolam, mas molham. As águas calmas, mas as profundezas se agitam. Mergulha, descobre, se inquiete, descubra. As veias levam o sangue nas artérias do meu Recife.

Roberto Efrem